A Pscanálise na obra “O Corcunda de Notre Dame”
Introdução
A obra “Notre Dame de Paris, 1482”, também conhecida como “O Corcunda de Notre Dame”, do escritor francês Victor Hugo conta a história de Esmeralda, uma cigana egípcia que faz performances na rua, principalmente de dança, em 1482. Em uma dessas atuações ela chama a atenção e desperta o desejo de três homens: Claude Frollo, o cardeal, Quasímodo, o sineiro de Notre Dame, Phoebus, um cavaleiro. A história não é linear e é dividida em 11 livros, cada um com enfoque maior em um personagem e em linhas temporais distintas.
A infância de Victor Hugo foi marcada por diversos acontecimentos históricos e com muita instabilidade e divergência política na França. Isso estava presente na sua casa, com pontos de vista políticos e religiosos opostos de seus pais. Seu pai era um oficial deísta, ou seja, acreditava que a criação do universo por uma energia superior, através da razão, livre pensamento e experiência pessoal, além de ser republicano e ver Napoleão como um herói. Já sua mãe era uma radical católica defensora da monarquia.
Por causa da ocupação de seu pai, a família se mudava com frequência, algo que influenciou muito a sua visão de mundo. Porém, após um tempo, sua mãe se cansou desse estilo de vida e se separou do marido, se mudando para Paris com seus filhos. Assim, ela tomou conta da educação e formação deles. Isso influenciou seus primeiros trabalhos na poesia e ficção reflete sua devoção pelo rei e pela fé. Ele escrevia desde criança, chegando a concorrer no concurso de poesia da Academia Francesa de Letras e, se não fosse pela sua idade, teria ganhado. Além disso, também colaborou, junto com o seu irmão,na fundação da revista literária Le Conservateur Littéraire e teve duas odes premiadas nos Jogos Florais de Toulouse. Com apenas 28 anos já possuía grande reconhecimento como um poeta e dramaturgo. Ao longo de seus 83 anos de vida, cerca de setenta anos foram dedicados a escrever dezenas de poemas, romances e peças.
Na juventude era um monarquista ultraconservador e católico devido à influência materna, entretanto na sua idade madura, tornou-se o símbolo vivo de um republicano anticlerical. O principal evento que o fez mudar sua visão política e religiosa, que seria muito mostrada em seus livros, foi a Revolução de 30, que, de acordo com seus escritos, “Minhas antigas convicções monarquista e católica de 1820 estão se desmanchando com a idade e a experiência. Resta algo delas, mas não passam de religiosa e poética ruína. Recolho-me ainda às vezes, considerando-as com respeito, mas não rezo mais por elas”. Aos 46 anos elegeu-se deputado pelo partido conservador, mas as suas posições políticas o fizeram ser frequentemente vaiado dentro de sua bancada e aplaudido pelos socialistas. Apesar de seu grupo, ele fazia campanha contra a miséria e ao defender a obrigatoriedade do ensino público e laico e se opunha à pena de morte.
No ano de 1823, ele escreveu um artigo que elogia a idade média, traçando um esboço de um futuro romance medieval, que não se limitaria a narração de aventuras, que era o comum da época, mas buscaria compor algo “semelhante a vida, drama estranho em que o bonito e o feio, bem e o mal se misturam”. Sete anos depois, ele finalmente conseguiu começar escrever a obra, chamada inicialmente de Notre Dame de Paris, após ser pressionado por seu editor, que encomendou o romance e o autor escreveu-o em poucos meses, publicando-o em 1831. Esse livro foi um grande marco na carreira do escritor, com uma enorme recepção literária, apesar de grande parte das críticas publicadas na época fossem negativas. A obra foi adaptada diversas vezes à ópera, a dança, ao cinema e ao desenho animado.
Entretanto, as primeiras sete edições do livro foram publicadas com três capítulos a menos, já que o envelope em que eles estavam foi extraviado e acabou se perdendo. Entretanto, as partes que faltavam não comprometeram a essência do romance, por serem relacionados a arte e história, mas, quando elas finalmente foram encontradas, publicaram uma nova edição com esses capítulos, em 1832.
Na composição do romance, Victor Hugo se utiliza do seu conhecimento arquitetônico, histórico e alquímico para formar paralelos com o enredo do romance. Sua principal referência é a Catedral de Notre Dame, em Paris. Ela é o plano de fundo para grande parte da história, que se passa ou dentro ou ao seu redor. Ela é considerada como um edifício de transição de estilos. Suas colunas altas, com arcos capazes de segurar a estrutura pesada do teto davam a igreja um aspecto de leveza e altura. Já suas janelas grandes com coloridos davam a impressão de misticismo e iluminação divina. Essas são algumas características do estilo gótico, movimento artístico da idade média, em que essa Igreja foi uma das primeiras obras a serem concluídas. Porém, a sua construção se iniciou muito antes das características góticas serem criadas, em 1163 e, por isso, a igreja também possui vários traços do estilo românico normando, que dava uma forte e compacta unidade a igreja. Por isso, apesar de ser uma igreja conhecida mundialmente, possui uma nuance de monstruosidade, de não adequação, que também é representado na obra. A mistura do feio e do sublime da catedral também está encarnado no sineiro Quasímodo, ligando-o à igreja. Segundo Victor Hugo, o sineiro havia assumido a forma da catedral, assim como o caramujo toma a forma de uma concha.
No livro, Victor Hugo afirma que sua inspiração para a obra surgiu ao visitar a catedral e encontrar, em um canto de uma das torres, a palavra ANÁTKH, palavra grega que significa necessidade, fatalidade. Devido a caligrafia com forma e maneira gótica, o autor identificou que se tratava de um escrito da Idade Média. Isso causou imensa impressão nele, que tentou imaginar como seria essa pessoa aflita que não quis morrer sem deixar uma marca, um estigma de crime ou infelicidade no corpo da igreja. Depois de algum tempo, a inscrição dessa parede desapareceu, provavelmente sendo raspada ou caiada. Sobre isso, ele afirma “é o que se faz há quase duzentos anos com as maravilhosas igrejas da Idade Média. São mutilações que vêm tanto de dentro quanto de fora. O padre pinta, o arquiteto raspa e depois vem o povo e as destrói.” O homem que escreveu aquela palavra já havia desaparecido há muitos séculos, assim como a palavra desapareceu da parede da igreja e, futuramente, a igreja poderia também desaparecer. Foi a partir disso que Victor Hugo decidiu escrever esse livro.
Além disso, no ano de 2010, alguns pesquisadores do museu Tate, encontraram uma possível inspiração para Quasimodo em um dos livros de memória de Henry Sibson, um aventureiro que trabalhou como escultor em Notre Dame, na mesma época em que o livro estava sendo construído. Ele fazia menção a um colega corcunda e solitário. Em seus escritos, ele dizia: “Fiz uma solicitação nos estudos do governo, onde estavam construindo grandes figuras, e aqui me encontrei com o senhor Trajano, o homem mais digno, paternal e gentil que já existiu. Ele trabalhava para o escultor do governo, cujo nome eu esqueci porque não me relacionei com ele. Tudo o que sei é que ele era corcunda e não gostava de se misturar com os escultores. ”Acredita-se que esse homem serviu de
referência para que Victor Hugo criasse o personagem.
Sua preocupação com o futuro da Igreja era válido, já que, na época, estavam planejando destruir a catedral de Notre Dame para utilizar as suas partes na construção de novas estruturas e esse autor conseguiu impedir que isso ocorresse. O estado deplorável em que a igreja foi deixada, principalmente após a Revolução Francesa, que vandalizou as esculturas de monarcas, pinturas religiosas e arquitetura predominantemente gótica, pois representava os ideias contra revolucionários, como a religiosidade e monarquia. Passaram a utilizá-la como um local para armazenamento e produção de armamentos. A recepção do livro foi tão boa que a população começou a organizar um movimento contra a derrubada da catedral e fazendo pressão para a restauração de Notre Dame, se tornando uma grande vitória do escritor, que sempre reivindicou insistentemente a proteção dos monumentos históricos em diversos artigos, como no artigo “Guerra aos demolidores”.
Mesmo assim, ele consegue abordar dois tipos de temas que estão presentes no imaginário popular desde os tempos primórdios e sempre despertou o interesse e o fascínio de autores e estudiosos: o amor e a monstruosidade. No romance, a narrativa se desenvolve a partir das relações estabelecidas entre Quasímodo, Frollo, Esmeralda, Phoebus e Gringoire, dentre os quais dois se configuram como tipos distintos de monstro. Quasímodo sempre foi rejeitado, considerado como monstro por causa de suas deformidades corporais e completamente apaixonado pela cigana Esmeralda, que não retribui seu amor. A outra demonstração de monstruosidade está presente em Frollo, que alimenta um desejo perverso pela cigana, que o leva a cometer diversos atos violentos, mostrando seu lado mais sombrio, sua monstruosidade moral. Assim, a obra mostra principalmente duas noções de amor diametralmente opostas, uma capaz de despertar o melhor no ser humano e a outra capaz de despertar o seu pior.
Essa análise possui o intuito de mostrar as semelhanças do livro com os pensamentos da psicanálise que, apesar de terem sido escritos por Freud 70 anos após a publicação da obra original, conseguem ajudar a desvendar a complexidade dos personagens criados por Victor Hugo.
Quasímodo
Já na escolha do nome feita pelo autor indica um aspecto interessante de sua história e personalidade. Quasímodo é o nome do primeiro domingo após a Páscoa, na tradição cristã. A denominação vem das primeiras palavras do padre durante a missa desse dia: Quasimodo genti infantes. A expressão vinda do latim é entoada na entrada do padre e pode significar “ criança recém-nascida”, ou ainda, “aquele que ainda tem muito a descobrir”. O nome atribuído a Quasímodo pode ser interpretado como uma menção ao dia em que foi encontrado por Frollo. Entretanto, pode haver um segundo significado, também vindo do latim, como sendo um quasi modo, ou seja, um quase homem. Logo, o nome dado por Victor Hugo tenta mostrar a essência ambígua do corcunda, podendo remeter tanto ao dia em que o sineiro de Notre Dame fora encontrado, quanto à incompletude de Quasimodo.
Desde criança sempre despertou horror e fascínio nas pessoas a sua volta. Quando foi abandonado em Notre-Dame, era observado por senhoras, que conversavam horrorizadas entre si, comparando a criança a um macaco e ao demônio. Esse pensamento influenciou muito em sua auto-imagem.
Durante a Idade Média, quando a história se desenvolve, a monstruosidade e o diabo estava associado às más formações físicas. Tudo aquilo que se apresentava como um contraposto ao padrão estético definido na época era considerado como monstruoso, que só poderia ser fruto de uma obra do demônio. Ao longo de toda a narrativa, diversas metáforas e características que o associam ao monstro, ao mal e ao animal. Quasímodo chegou a desejar se tornar completamente animal, enquanto olhava para a cabra de Esmeralda, pois, assim, poderia ser “normal” e conseguiria ser amado.
Além de ser completamente deformado, Quasímodo se tornou surdo ao longo dos anos, devido ao seu trabalho como sineiro. Seu ofício era uma das únicas coisas que ele amava e foi isso que acabou o afastando da linguagem e, consequentemente, do mundo, já que o corcunda não conseguia se comunicar com as pessoas, somente com Frollo, com quem tinha uma língua própria, baseada em grunhidos e sinais com as mãos.
Por causa disso, sentia-se excluído do mundo e seu ódio por ele é aumentado à medida que ele percebe o modo com que é tratado pela sociedade. Os parisienses mostraram a ele apenas raiva, ódio e desprezo. Quando ele saia da catedral, a população lançava olhares raivosos e maldiziam-o. A quantidade de agressões fez com que passasse a odiar-los, como afirmava Victor Hugo: “ele odiava o povo por se sentir odiado”.
O isolamento de Quasímodo fez com que ele se voltasse totalmente para a catedral. Notre-Dame possuía um papel de mãe para o sineiro, ela era responsável por sua sobrevivência e segurança. A igreja também seria parcialmente responsável pela retirada do corcunda do mundo. Na narrativa, Victor Hugo menciona diversas vezes ao longo da narrativa que o corcunda se tornou parte integrante da igreja.
“É assim que, pouco a pouco, desenvolvendo-se sempre no sentido da catedral, vivendo nela, dormindo nela, saindo dela quase nunca, sofrendo a toda hora sua pressão misteriosa, ele chegou a parecer com ela, a incrustar-se com ela, por assim dizer, a fazer parte integral dela.”
O único ser que o acolhe, além de Notre Dame, é o padre Claude Frollo, que representava um papel paterno na vida de Quasímodo, sendo responsável pela castração do sineiro. Como o arcebispo é o único que o aceita, ele se espelha nela, para continuar recebendo o seu amor e atenção. Logo, quando Frollo decide sequestrar Esmeralda, o sineiro, mesmo sem conhecê-la, decide ajudá-lo. O garoto é completamente submisso aos desejos do padre.
Outra situação que demonstra a total submissão de Quasímodo a Frollo é o episódio do festival dos tolos. Esse é o primeiro momento em que o corcunda se sente potente, inserido na sociedade, mesmo que a população estivesse o exaltando de brincadeira. Mesmo assim, quando o padre chega e briga com ele, o sineiro volta a ser completamente submisso aos desejos de Frollo, voltando para Notre-Dame, mesmo que ele quisesse continuar sendo exaltado e amado pela população.
Apesar de possuir uma força além do normal, que o daria poder para ser um ser mais ativo na sociedade, ele utiliza ela para ser passivo nas situações, fazendo apenas o que é mandado ou o necessário para defender as pessoas com quem se importa, que são Esmeralda e Frollo. No momento em que é ameaçado, sua postura passiva se transforma em uma força ativa, que ele utiliza para destruir seus problemas.
A única pessoa além de Frollo que o defendeu foi Esmeralda e, por causa da pequena demonstração de afeto, quando ela deu um pouco de água a ele após ser açoitado, ele começou a sentir paixão por ela. Como ele só havia conhecido o amor submisso que o foi ensinado por seu pai adotivo e, por isso, começa a fazer tudo o que a Esmeralda deseja, mesmo que isso o castre, já que a castração está presente em sua vida desde muito cedo. Um exemplo disso é quando ela pede que ele busque Phoebus. Apesar de isso mostrar para ele que a cigana prefere outro, que se apresentaria como uma castração, ele atende ao seu desejo. Para ele é mais prazeroso atender ao pedido dela e ser castrado do que
Quando os desejos de Esmeralda e Frollo se apresentam como opostos, como na cena em que o padre tenta sequestrá-la da catedral, o sineiro pede para que seu pai o mate antes de fazer algo com a cigana. Ele não conseguia aguentar o peso de não poder ajudar a satisfazer os desejos deles e preferia morrer do que ficar com essa culpa.
Esmeralda fez com que, aos poucos, a imagem que Quasímodo havia construído sobre si mesmo fosse se modificando, gerando uma angústia enorme no corcunda. Ela era a única pessoa que tentava tratá-lo como alguém normal, enquanto ele estava convencido de que era um monstro. Por isso, ele evitava ficar perto dela, para tentar preservar a imagem que tem de si mesmo.
No momento em que percebe que a cigana foi sequestrada e que ele não havia conseguido salvá-la, sente-se solitário novamente, representando uma enorme castração. Ela conseguiu preencher um pouco a sua falta e, quando ela vai embora, ele sente ainda mais a castração, pois ele tinha uma ideia do que era ser um pouco mais completo do que ele está.
Logo, quando ele percebe que Esmeralda foi morta e que ele não poderia fazer nada para resgatá-la e percebe que sua figura paterna havia sido responsável por uma castração. Ele, então, começa a odiá-lo. Antes da morte da cigana, o corcunda era completamente submisso e passivo ao mundo, aceitando as castrações que lhe eram impostas. A magnitude dessa castração fez com que Quasímodo quisesse eliminar o ser que, para ele, seria o responsável por todo o seu sofrimento e castração.
Após matar Frollo, ele se vê solitário, em um mundo que o rejeita. Por isso, ele não aceita a morte de Esmeralda, pois isso implicaria em aceitar que ele está sozinho em uma sociedade que o odeia. Então, ele resolve passar o resto de sua vida com Esmeralda, mesmo que isso representasse sua própria morte.
Claude Frollo
No romance, o padre é retratado como uma pessoa fria e sombria. Desde criança se dedicou aos estudos e conseguiu concluir 4 faculdades antes dos 18 anos. Ele vê o saber como uma forma de prazer, tirando-o do mundo, onde ele não conseguia se inserir, já que desde muito foi mandado pelos pais para um colégio interno, em que se tornou uma pessoa triste e antissocial. Ele busca preencher a falta que seja com o saber. Ele deseja conhecimento para tentar se sentir completo, mas nunca consegue e, por isso, sempre procura aprender mais sobre diversos assuntos, principalmente a alquimia e a religião.
Sua vida muda quando seus pais morrem e ele tem que tomar conta de seu irmão mais novo, Jehan, a quem ele cuida com um amor incondicional. Sua relação com ele passa a ser muito mais maternal do que fraternal, pois ele se torna responsável pela segurança de seu irmão e, por mais que tentasse ser responsável pela castração do irmão, sempre acabava cedendo aos desejos de Jehan.
Por isso, seu irmão não aceita a castração e nem a realidade, vivendo em um mundo paralelo, onde só existia mulheres e bebida. Ele não sentia a necessidade de se impor no mundo, já que sabia que seu irmão estaria lá para lhe ajudar em qualquer coisa que precisasse. O único momento em que Jehan tenta se impor ao mundo e fazer algo por si só, acaba morrendo, justamente por não saber como se portar diante da castração.
Seu amor por Jehan fez com que ele adotasse Quasímodo, mas o mesmo não demonstrou o afeto e amor pelo sineiro. Entretanto, a partir do momento que percebeu que seu irmão mais novo não seguiria o caminho que ele esperava, se fechou ainda mais, tornando-se mais rígido e solitário, pois sentia que havia falhado com seu irmão.
Mesmo assim, seus sentimentos pelo corcunda continuaram os mesmos, ele o tratava como um servo, um escravo. E, como ele era o único com quem Quasímodo possuía alguma relação e, por isso, se utilizava disso para que ordenasse o sineiro a fazer o que ele quisesse.
Claude, para Freud, seria o maior exemplo de neurótico da narrativa, ou seja, possui dentro de si, ao mesmo tempo, uma criança irracional e um censor ultra moral, que pune todos os impulsos que vão contra seu ideal. A maior parte da história, ele está em conflito entre os preceitos morais da época, a sua autoimagem e o desejo que nutre por Esmeralda. A Idade Média, período em que se passa a história, trouxe diversas mudanças, influenciada pelos valores e moral cristã, especialmente quando se diz respeito à correlação entre desejo e prazer. O debate moral de Frollo é resultante disso, pois sua fé entra em conflito com seu desejo e isso faz com que ele entre em embate consigo mesmo e desconte seu ódio, resultante da castração, em Esmeralda.
O padre é um ser ativo em todas as suas relações, sempre exprimindo a sua opinião e marca no mundo, sem se importar com a opinião do resto da população, que achava que, por ele ter adotado o Quasímodo, compactuou com o demônio.
Toda a sua vida gira em torno da imagem que ele tem de si mesmo, de um homem estudioso e religioso, que não se curva às vontades do desejo. Chega a sentir ódio pelas mulheres, que seriam objetos de desejo e tentação dos homens, principalmente as egípcias, que são pagãs, sem fé e, portanto, sem escrúpulos. Esse ódio poderia representar um ódio que ele possuía das pessoas que eram mais livres, que viviam grande parte da vida no princípio do prazer, enquanto ele era constantemente castrado pelo seu irmão, pelo seu trabalho e pela população.
Por isso, quando começa a sentir desejo por Esmeralda, toda a sua autoimagem é derrubada, pois isso vai contra a ideia de religiosidade da época. Durante toda a obra, o personagem aparece em um conflito, tentando convencer se de que seu amor pela cigana não vai contra sua fé. Ele constrói uma imagem para a cigana, projetando nela tudo o que ele desejava, tomando-a como objeto de suas fantasias imaginárias.
Ele se vê obrigado a se colocar no papel de objeto, remetendo-o ao lugar da falta. Seus sentimentos por ela se tornam dicotômicos, ao mesmo tempo ele ama a versão idealizada da moça e a odeia, pois seu desejo por ela exige que ele reconheça que algo o falta. Mas, a egípcia não é aquilo que lhe é imposto, gerando mais ódio, pois ele se coloca em uma posição passiva, a de amante, e mesmo assim é rejeitado pela cigana. Isso o leva a cometer uma série de atos violentos contra ela, para tentar fazer com que ela aceite o seu amor, para conseguir impor a sua vontade sob ela.
Ao contrário de Quasímodo, que possui um amor puro e submisso por Esmeralda, o padre possui um desejo intenso pela cigana. Isso gera nele uma pulsão incontrolável que, como não pode ser consumada, se transforma. Essa potência destrutiva é a causadora da aparição de sua deformidade ética, que se mostra a sua monstruosidade moral.
A narrativa de Frollo é muito marcada pelo ciúme que ele sente pela egípcia. Frollo cometeu diversos atos violentos em razão disso, como golpear Phoebus por um punhal, ser o sujeito por quem Esmeralda dedica seu amor. Outro ser que desperta o ciúme do cardeal é Quasímodo, apesar de ser um homem monstruoso, consegue o mínimo de afeição da cigana. O padre consegue entender a paixão da moça pelo cavaleiro, pois ele é mais bonito e corajoso que ele, mas o corcunda é o seu grotesco serviçal e o fato dele ser mais próximo da egípcia do que Frollo o perturba.
Após o padre tentar matar Phoebus e Esmeralda ser presa injustamente e torturada, o padre vai para a prisão, tentar convencê-la a amá-lo. Em seu discurso, percebesse que ele, apesar de se orgulhar de ser um homem completamente voltado para razão, ele deixa o seu intelecto de lado e faz um discurso inteiro baseado na emoção, reconhecendo a castração que ela está impondo a ele.
“Não encontro palavras. Tinha contudo pensado bem no que te diria. Agora tremo e arrepio-me, desfaleço no momento decisivo, sinto que alguma coisa de supremo nos envolve, e eu balbucio. Oh! Eu vou cair sobre estas pedras se não tens piedade de mim; piedade de ti. Não nos condenes a ambos. Se soubesses quanto eu te amo! Que coração palpita aqui no meu peito! Oh! Que deserção de toda a virtude! Que abandono desesperado de mim mesmo! Doutor, ultrajo a ciência; nobre, quebro o meu brasão; padre, faço do missal um travesseiro de luxúria, ofendo o meu Deus! Tudo isto por tua causa, encantadora! Para ser mais digno do teu inferno! E tu repeles o condenado! Oh! Que te diga tudo! Mais ainda, alguma coisa mais horrível, oh! Mais horrível..”
Quando ela o rejeita, ele se torna novamente agressivo, tentando obrigá-la a aceitá-lo, numa última tentativa de dominá-la, disse que ou ele fugiria com ele ou ela morreria. Ele prefere ver ela morta do que nos braços de outro homem.Ela se recusa a assumir uma postura passiva, de ser amada por ele, preferindo continuar ativa, ou seja, amando Phoebus, mesmo que seus sentimentos não fossem retribuídos.
Mesmo sabendo que ela não o aceitaria, ele não consegue aceitar a castração e tenta sequestrar Esmeralda novamente e procura, novamente, convencê-la de que ela deveria amá-lo. Dessa vez, ele convence Gringoire a ajudá-lo a retirar a cigana da Igreja, enquanto ela dorme. Porém, quando ela percebe que está sendo levada pelo padre, afirma veementemente que prefere ser enforcada do que ficar com ele. Isso faz com que ele transite sua fala de súplica para ameaça, por não saber lidar com esse novo elemento em sua vida, que ele não está acostumado, a castração, causada pela rejeição. A loucura e o desespero leva ele a entregá-la para a justiça.
Ele assiste ao enforcamento do alto das torres de Notre-Dame, esboçando uma reação somente depois da sua morte. Ele começa a rir, pois nesse momento, ele mata o ser que mostra para ele que ele não é completo. Com isso, ele consegue voltar a ter a imagem que ele possui de si mesmo intacta, pois seu conflito interno entre fé e desejo acaba. Assim, ele sente um alívio, pois seu sofrimento, por hora, havia acabado.
Phoebus de Châteaupers
Na narrativa, Phoebus é retratado como um belo oficial, membro da cavalaria. Por sua beleza, posição social e habilidade em seu trabalho como arqueiro, é comparado diversas vezes na narrativa a um deus. Isso já começa na escolha de seu nome, que significa “sol” em latim. Ele é o estereótipo do herói romântico, mas durante a história, percebe-se que ele é o contrário desse modelo.
Apesar de, no início da narrativa, dar a impressão de que o homem seria o herói da narrativa, por ter resgatado Esmeralda de um sequestro, logo Victor Hugo mostra o caráter do personagem, cuja vida se baseia em seus hábitos vulgares.
Sua vida se baseia em gastar o dinheiro ganho em seu trabalho com bebidas e mulheres. Ele ia contra o pensamento comum da época, que dizia que o desejo sexual deveria ser reprimido. Para ele, esses objetos criaram uma sustentação para um imaginário de felicidade que não corresponde à realidade de sua vida. Ele busca viver apenas no princípio do prazer, buscando, por meio dessas formas, fugir de sua realidade, que tentava o castrar.
Sua principal castração era o casamento, que era um preceito da época imposto aquela classe social. Então, ele se viu obrigado a firmar uma relação com Fleur-de-Lys, uma moça burguesa. Porém, Phoebus busca basear sua relação meramente em interesses pessoais e sociais. Mesmo assim, ele continua tentando, às vezes, suprir o seu desejo sexual com ela, antes do casamento, mas sempre acabou frustrado, por causa das intromissões da mãe de sua noiva.
Apesar de estar comprometido, permaneceu tentando ficar o máximo de tempo possível no princípio do prazer, sem encarar a realidade. Por isso, continua saindo com mulheres e bebendo com seus amigos.
Quando resgata Esmeralda, a cigana se apaixona instantaneamente por ele, especialmente devido a beleza. O homem, entretanto, nunca sentiu nada além de um enorme desejo carnal por ela.
Por isso, depois que consegue sair com ela e beijá-la, não se importa mais com o bem estar da moça. Mesmo sabendo que não foi ela que tentou o matar, decidiu que não iria depor em sua defesa no tribunal, pois isso geraria uma ferida narcísica. Ele preferia que o nome do cavaleiro que havia sido esfaqueado permanecesse em segredo, para que ele continuasse sendo um herói e deixa, passivamente, a cigana ser condenada à morte. E, quando vê que a garota está sendo levada para a forca, pela primeira vez, procura sair de perto, para não ver a consequência de seu ato.
A última vez que é mencionado na história é em seu casamento, que é relatado pelo autor como um fim trágico. Essa representa uma enorme castração para Phoebus, que se vê forçado a entrar na realidade, deixando de lado o seu prazer, para formar uma família.
Esmeralda
A cigana é objeto de desejo dos três personagens comentados previamente. Ela encontra prazer em dançar e cantar, transformando isso em uma forma de ganhar dinheiro, junto com sua cabra Djali. Devido a sua beleza exótica e seus movimento, consegue conquistar o fascínio de Gringoire, que chegou a imaginar se ela não seria uma fada ou um anjo, e o desejo de Frollo.
Victor Hugo a apresenta como uma personagem dual, que, na maioria das vezes é ingênua e inocente, mas que pode se tornar uma mulher sensual e sedutora, especialmente enquanto dança.
Quando conhece Phoebus, é iludida por sua bela aparência e por tê-la resgatado, apaixonando-se perdidamente por ele. O cavaleiro, percebendo a ingenuidade da moça, se aproveitou disso, espelhando-se num modelo de homem que ele achava que seria o ideal para ela, enganando-a e falando que também possui sentimentos por ela. Ele nunca teve nenhuma intenção de ter algum compromisso com ela, pois ela não estava em seu nível social.
Por ter sido sequestrada na infância pelos ciganos, ela teve que crescer praticamente sozinha, pois não tinha um pai ou mãe específico. Ela teve que se criar no mundo, trabalhando desde cedo e vivendo sozinha. Seu sonho sempre foi o de ter alguém para fazer um papel materno, de cuidar e proteger ela, pois ela nunca teve isso. Primeiramente, ela coloca todas as expectativas em um possível reencontro com a sua mãe. Por isso, ela acredita em um amuleto “mágico”, que a levaria a encontrar sua mãe, se ela permanecesse virgem. Depois, ela colocou sua esperança de ser protegida, de deixar de ser ativa no mundo para passar a ter uma posição passiva, quando viu que Phoebus a protegeu. Ela pensou que, com ele, poderia assumir um papel passivo, não precisaria se impor no mundo, como teve que fazer durante toda a sua vida. Com isso, para agradar o outro, resolveu aceitar tudo o que ele a pedia, mesmo que isso significasse perder sua virgindade e, portanto, a possibilidade de ver sua mãe novamente.
Por isso, todas as vezes que ela o vê, chama por ele, com esperança de que ele irá salvá-la, acabar com seus problemas e ficar com ela. Porém, sempre se decepciona, pois ele não se importa com ela. A cigana não consegue lidar com a realidade e, portanto, continua acreditando que ele a ama, mesmo quando ele explicitamente fica com outra ou muda o caminho quando a vê.
Entretanto, ela somente quer ser objeto de Phoebus e, quando Frollo e Quasímodo tentam torná-la objeto de seus desejos, ela os nega. A cigana consegue virar sujeito dessas relações, ela é a amada.
A menina sofre grande preconceito por ser cigana, perante toda a sociedade, justamente pelos dogmas cristãos presentes na época. Ela é vista como bruxa por causa de seus truques com Djali, sua cabra, e isso influencia em sua sentença, quando é julgada pela tentativa de assassinato de Phoebus. Esse preconceito também atingiu Gringoire, que, depois de perceber que ela era cigana, ao vê-la dançar, perdeu completamente o encanto por ela. Entretanto, a beleza da moça foi o suficiente que ele não continuasse com esse preconceito.
A relação de Esmeralda com Gringoire, que para alguns estudiosos da obra, representa o alter-ego de Victor Hugo, ele é a marca do autor na história. O destino dos dois se entrelaça depois que o poeta resolve seguir a cigana pelas ruas de Paris, até chegar no Pátio dos Milagres, momento em que ela o salva da forca. Eles se casam, mas Esmeralda não quer consumar o casamento. Ao se ver castrado, Gringoire começa a nutrir um sentimento mais amistoso com a cabra Djali, que ele descreve como ““doce, inteligente e espirituosa”, que o cobre de carícias.
Eles acabaram se separando pelo mesmo motivo que os uniu: a condenação à forca. Quando Frollo pede sua ajuda, ele aceita para poder ajudar a cabra.
Djali era o único ser que realmente prestava atenção nele, já que suas peças não fazia sucesso, ele não tinha amigos e até Esmeralda o rejeitava. Apesar da cigana sentir um amor fraternal pelo escritor, mesmo com pouco tempo de convivência, ele prefere resgatar a cabra, que não o castrava, era completamente submissa a ele, do que uma pessoa, que tinha desejos e vontades. Portanto, Gringoire, mesmo sem querer, foi fundamental para a morte de Esmeralda.
Outra relação importante de Esmeralda foi a com a sua mãe. A garota foi afastada da mãe muito jovem e teve que crescer sendo criada como cigana. Antes dela ser levada, a mãe, Paquette Ia Chantefleurie a tinha como falos, como extensão de seu próprio ser. Após a perda de seu falos, ela decide viver afastada do mundo, em constante castração, por não saber mais lidar com o mundo. Mesmo assim, ela continua procurando pela filha, que seria o único objeto que poderia completá-la. Ao mesmo tempo, ela começa a odiar todos os ciganos, especialmente Esmeralda, pois quando os vê é relembrada da perda de seu falos, principalmente a menina, que a lembrava de sua filha, já que as duas possuíam a mesma idade. Quando Paquette descobre que Esmeralda é sua filha, a mulher tenta defender o seu redescoberto falos e morre tentando salvar sua filha.
A cigana acabou morrendo por causa de seu desejo de ser amada por Phoebus, pois ela ainda descobriu que o amor de sua mãe não preenchia a sua falta que ela tinha. Por isso, quando ela viu seu amado, chamou por ele, mesmo sendo procurada pelos cavaleiros do rei. Assim, conseguiram achá-la e matá-la, sem que Phoebus notasse ou se importasse.
Conclusão
Pode-se perceber que os conceitos da psicanálise estão muito presente na história de Victor Hugo, apesar de Freud somente publicou sua primeira obra 70 anos depois da publicação do “Corcunda de Notre-Dame”.
A castração é um dos pontos centrais da narrativa, principalmente por causa da forma com que a sociedade era. Os preceitos e dogmas cristãos influenciavam diretamente na vida da população, fazendo com que o prazer e o desejo fossem considerados tabus.
Outro ponto importante do livro eram as relações familiares entre os personagens, a de Quasímodo e Frollo, Esmeralda e Paquette e Frollo e Jehan. Elas influenciaram diretamente na relação deles com o resto do mundo, como já foi apresentado.
Por ser uma obra de ficção gótica, com um cenário medieval e sombrio, o autor terminou a sua obra com uma tragédia. Todos os personagens principais sofrem no final, representando a castração final: Frollo, Esmeralda, Paquette e Quasímodo morrem sem amor, Phoebus se casa e Gringoire passa o resto de sua vida sendo medíocre, suas peças nunca fizeram sucesso.
Por isso, o embate entre desejo e castração, um dos principais pontos da psicanálise é, também, o maior ponto do livro e o que fez com que eu me interessasse por ele, desde o filme quando eu assistia quando criança até ao livro, que li no começo do ano.